ARTIGO

BARBA, CABELO E BIGODE:
CASCADURA, UMA EXPERIÊNCIA RADICAL
Sérgio Puccini
Artigo originalmente publicado em Site Negativo Online
Disponível em:
http://www.negativoonline.com/artigos.aspx?id=41


Por conta da participação do curta Voltei para buscar os bolinhos, dirigido por mim e por Alessandra Brum, tive a oportunidade de participar pela primeira vez do prestigiado Festival de Cinema de Brasília na sua 40° edição. Nosso curta passou na Mostra de 16mm que ocorreu no amplo auditório Cláudio Santoro do Teatro Nacional. Voltei foi exibido na sessão de sábado juntamente com outros tantos bons filmes. No domingo voltamos ao teatro para aquela que seria a última sessão da Mostra 16mm.

O Festival de Brasília é o último reduto de exibição da bitola de 16mm cuja morte já foi decretada pelos laboratórios de cinema do país. A permanência do espaço de exibição no próximo Festival de Brasília ainda é incerta pelo baixo número de filmes inscritos nessa última edição. Para o ano que vem é certo que o número de concorrentes deverá diminuir ainda mais o que inviabilizaria a Mostra. A recusa dos laboratórios brasileiros em trabalhar com a bitola de 16mm limita as opções de suporte criando dificuldades para jovens realizadores que ambicionam iniciar carreira no cinema, se utilizando o suporte fotográfico, sem possuir um bom apoio financeiro. A produção independente e de baixo orçamento ficará forçosamente restrita ao suporte digital. A consolidação do suporte digital é um caminho sem volta por questões de praticidade e custos. A prática com o 16mm em situação de filmagem, difere radicalmente da prática de gravação em suporte digital. O trabalho com câmeras de cinema exige uma preparação maior para a tomada do que quando se trabalha com câmeras digitais. Além disso, se pensarmos em termos de qualidade de imagem, o digital não substitui a imagem fotográfica do 16mm. Trata-se de imagens com características diferentes. Muito embora os programas de edição possuam efeitos de simulação da imagem fotográfica, tais efeitos não conseguem esconder seu artificialismo. Assim como acontece com o super-8, a imagem obtida pelo 16mm pode também ser explorada como recurso estético.

Voltando ao Festival de Brasília, mais precisamente à sessão de domingo da Mostra 16mm, foi justamente um filme nascido de uma experiência artesanal que atraiu mais a minha atenção entre todos os filmes do Festival, incluindo aí os de 35mm. Trata-se de Cascadura, de Felipe Cataldo e Godot Quincas, do Rio de Janeiro. Cascadura foi o último filme exibido naquela que poderá ter sido a última sessão de 16mm do Festival, fato que faz com que aquela exibição adquira maior importância. Rodado com latas de negativos vencidos, graças a um prêmio ganho por seus realizadores, o filme se inicia com créditos escritos a mão diretamente na película. Segue uma seqüência de imagens superexpostas, em que os contornos da figuração são quase totalmente apagados em troca da imagem abstrata. A abstração dá lugar a imagem de uma menina que caminha por uma rua carregando consigo uma boneca. Em plano-seqüência, a câmera vagueia pelo interior de um trem de subúrbio registrando as expressões dos passageiros. Entre esses passageiros, o personagem interpretado por Godot Quincas com chapéu e vestimenta branca, se portando com um típico boêmio da Zona Norte carioca. Voltamos a encontrar a criança com sua boneca caminhando pela rua até ser abordada por um homem barbudo e com uma vasta cabeleira, como um desses profetas de rua. A abordagem é interrompida com a chegada de um grupo de três ou quatro que passam a torturá-lo violentamente, arrancando, a tesouradas, aquela profusão de pêlos. “Barba, cabelo e bigode”, diz o cartaz exposto por um dos torturadores. O grupo segue em sua caminhada até que Godot Quincas seja vítima de um ataque fulminante que o leva ao chão. A progressão das cenas não segue nenhuma lógica narrativa, trata de associações livres que lembram um sonho. A música que acompanha as cenas, descolada de um vinil raro de Hermeto Pascoal (Slave Mass), não é uma escolha gratuita. O casamento dos riscos do 16mm com os chiados do disco de vinil, dois suportes que a indústria achou por bem extinguir, reforça o discurso de resistência que perpassa todo o filme.

Durante a exibição de Cascadura, fui percebendo que, dentro de toda a programação do Festival, aquele era um momento especial. De fato, cheguei a me sentir privilegiado por estar naquele auditório, naquela tarde de domingo. Diante de toda aquela precariedade técnica, existia ali, finalmente, uma surpresa. Nada da presivibilidade dos filmes bem feitos, que atendem às expectativas do gosto padrão da audiência e que mais parecem comerciais de TV. A precariedade da produção abria uma fissura, no contexto de sua exibição, por onde era possível perceber um discurso claramente articulado, construído a partir de refugos da indústria, como marca de um posicionamento político.

Como proposta estética, Cascadura tem uma longa lista de referências. Do cinema marginal ao cinema underground, sem esquecer as experiências do cinema de artista das vanguardas do início do século XX que repercutiram no Brasil na produção em Super-8 nos anos 70. Talvez aqui seria mais apropriado resistir à tentação de recorrer àquela extensa lista de citações, muito embora seja pertinente a apropriação de muitas das reivindicações do cinema marginal brasileiro feita pelo curta. A frase de Paulo Emílio, estampada na camiseta de um dos atores (“O pior filme brasileiro é mais interessante que o melhor filme estrangeiro”) aparece como uma das provas dessa filiação consciente. “Filmes péssimos e livres”, a frase de Sganzerla também caberia perfeitamente no contexto de representação do curta. Cascadura é um chute na bunda do virtuosismo técnico em favor da livre expressão criativa que manifesta sua força sejam quais forem os meios. A atualidade de Cascadura está justamente nessa aposta. O que não é pouco, principalmente quando levamos em conta a facilidade com que jovens realizadores se deixam domesticar pela indústria, maravilhados com a evolução técnica das câmeras digitais que os obrigam a entrar em um ciclo de consumo bastante dispendioso para se manter em dia com as novidades do mercado. Na voracidade do consumo, se esquecem que cinema, antes de ser um mero pretexto para um exercício da técnica é um valioso instrumento do pensamento.

Os acidentes de percurso incorporados à imagem (resultado da utilização de negativo vencido) colocam em mesmo plano de interesse tanto a materialidade do suporte quanto a imagem que esse suporte registra, o que atesta a autenticidade do 16mm, sem o qual não seria possível obter tais resultados. Como exercício de experimentação, Cascadura se vale daquilo que o 16mm tem de específico, tanto em termos da qualidade da imagem como da sua adequação à proposta dos realizadores. As características apontadas aqui, alinhadas ao contexto de exibição do filme, fazem com que Cascadura se transforme em um manifesto de defesa de uma prática de cinema constantemente ameaçada pelo domínio da produção de mercado; uma prática que não se esgota no imediatismo de interesses financeiros, possível graças a suportes alternativos, como a bitola de 16mm. Nesse sentido, há que ser saudado esse espaço de exibição proporcionado por Fernando Adolfo e toda a organização do Festival de Brasília.

Sérgio Puccini é doutor em cinema pela UNICAMP, diretor (com Alessandra Brum) e roteirista do curta Voltei para buscar os bolinhos (SP, 16mm, 2007).