ARTIGO

ROTEIRO DE CINEMA E CENA DRAMÁTICA:
considerações sobre a experiência da escrita

Sérgio Puccini


Esse artigo é uma extensão de capítulo publicado em livro do autor intitulado:
Roteiro de Documentário: da pré-produção à pós-produção
(Editora Papirus, 2009)


RESUMO
Esse artigo analisa aspectos ligados à experiência da escrita do roteiro cinematográfico partindo daquilo que seria sua menor parte: a cena dramática. Ao longo do artigo são levantados alguns aspectos ligados à funcionalidade da cena dramática dentro de um roteiro de cinema, em que citamos as concepções de alguns dos manuais de roteiro, bem como comentamos a relação, que nasce já no texto do roteiro, entre palavra e imagem. A análise situa o processo da escrita do roteiro dentro do campo das escritas dramáticas, estabelecendo relações com o texto teatral naquilo que seriam as diferenças entre as duas formas de escrita.

Sérgio Puccini é Mestre e Doutor em Cinema pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios, IA/UNICAMP.



MUITO embora seja o principal documento para a organização de um produto voltado para a tela, o roteiro de cinema, na forma padrão do roteiro de ficção, se sustenta em um elemento herdado da dramaturgia de palco, qual seja, a cena dramática1. A cena dramática, menor parte na divisão do ato de um texto teatral, vem a ser também a menor parte do roteiro de cinema em torno da qual toda a narrativa irá se articular. A cena é o elemento de continuidade dentro de uma ação maior que se estende além dos limites impostos pelas unidades de tempo e lugar.

No teatro, o recurso da utilização da cena dramática, que quebra a continuidade do ato, marca uma intervenção épica, tipicamente narrativa, dentro de uma forma dramática que tem nos contornos do palco seu elemento de convergência2. Embora freqüente, a livre adoção da cena, sob o impulso de se criar nova localização espacial para a ação, é procedimento de risco no teatro. Atrelada à maior liberdade na condução e apresentação dos eventos da história, liberdade garantida pela livre manipulação do espaço e do tempo da história possibilitada pela inserção de novas cenas dentro do contínuo do ato, está a conseqüente quebra da cadeia dialógica. O excesso de quebras causa o esvaziamento de uma tensão dramática que no drama vem a ser preferencialmente sustentada pela progressão contínua das réplicas e tréplicas dos personagens. A cada nova cena, instaura-se uma nova situação, o que equivale a dizer que uma determinada situação dramática poderá ser alterada ou renovada pela imposição de um artifício narrativo e não por uma evolução orgânica, concebida e insuflada dentro do quadro das motivações e movimentações do núcleo dramático, expressa pelo diálogo entre os personagens. A demasiada quebra da continuidade dialógica reduz a preponderância do diálogo na consumação da tensão dramática. Muito embora as manifestações teatrais não se conformem apenas a um modelo que erige o texto como principal componente do espetáculo, no que concerne especificamente ao texto teatral, o diálogo ainda é o componente principal que distingui a expressão dramatúrgica. É pouco provável encontrar qualidade em um texto teatral carregado por um diálogo sem força expressiva. Para que manifeste sua força, o diálogo dramático precisa de fôlego e de uma duração mínima para um desenvolvimento eficaz. A interrupção da cadeia dialógica vem a ser uma das razões pelas quais a excessiva proliferação de cenas, em um texto teatral, nem sempre encontra boa acolhida por parte do meio a que este texto se destina3. Outra conseqüência da proliferação de cenas no teatro está relacionada com uma especificidade técnica do meio. No teatro as transições espaciais determinadas pelo texto exigem mais da interferência criativa do encenador bem como da máquina teatral, o que ressalta o papel do dispositivo cênico na composição do espetáculo (aqui o risco não é assumido pelo texto mas pela concepção do espetáculo cênico). No cinema, ao contrário, essas transições são assimiláveis de forma transparente pela técnica da montagem cinematográfica que permite uma livre manipulação do espaço no decorrer da ação. Pela possibilidade de acesso aos recursos da montagem, a cena dramática adquiri, no roteiro de cinema, um status que não possui no teatro.


A cena do roteiro


Dentro do modelo dominante de formatação do roteiro de cinema, o início da cena dramática é sempre identificado por um cabeçalho que indica a localização cenográfica e o período do dia em que será realizada a filmagem, conforme vemos no exemplo a seguir:


CENA 2 - TERRENO BALDIO - EXTERIOR/DIA

André sai do supermercado, caminha pela calçada até um terreno baldio ao lado do supermercado. Ele olha para os lados, abre a mochila, revelando uma grande quantidade de dinheiro, notas de cem e cinqüenta. Despeja o dinheiro no chão. Derrama álcool sobre o dinheiro e acende um fósforo. O dinheiro queima.4


Qualquer alteração no tempo e no espaço, ou seja, qualquer quebra da continuidade da ação descrita, determinará o fim de uma cena e o início de outra. A cena é a partícula rigorosamente dramática no corpo de um texto que é, por vocação, narrativo, o texto cinematográfico. Como instrumento de um projeto narrativo, a cena do roteiro de cinema possui uma versatilidade rara se comparada com a cena do texto teatral. Seus formatos e funções se diversificam, podendo incluir cenas sem conteúdo dramático como as cenas de transição, de duração ínfima, que pouco se adaptam às convenções do palco e que servem à narrativa para informar a movimentação dos personagens pelo espaço e/ou pelo tempo da ação.

O tratamento da cena, dado pela maioria dos manuais de roteiro, apregoa, invariavelmente, a necessidade de que esta venha a ser concebida como o núcleo de uma ação dramática maior a ela integrada. A funcionalidade da cena está estreitamente ligada a eficácia de sua força motriz. A cena, como peça perfeitamente ajustada ao grande motor dramático da história, deve levar a história adiante. De Syd Field: “A cena é o elemento isolado mais importante de seu roteiro. É onde algo acontece – onde algo específico acontece. É uma unidade específica de ação – e o lugar em que você conta sua história. (...) O propósito da cena é mover a história adiante.”5 De David Howard e Edward Mabley: “Num certo sentido, uma cena é como uma peça de um ato, que se encaixa na cena anterior e na seguinte para formar o todo. Quando construída convencionalmente (como o são muitas das melhores), a cena tem um protagonista, do mesmo modo que a história completa. Além disso, as melhores cenas têm um objetivo, obstáculos, uma culminância e uma resolução.”6

A rigor, para que seja dramática, é necessário que a cena apresente algum conflito, configurado através do choque de intenções contrárias entre duas ou mais personagens, ou entre personagens e alguma força antagônica. No modelo aristotélico, que prega a adoção da unidade de ação como princípio fundamental para a composição da peça, a cena é uma célula da ação dramática, trás em si elementos dessa ação principal mesmo que não esteja, em um primeiro momento, claramente vinculada a esta, caso típico das cenas que introduzem pistas falsas para enganar o espectador em sua investigação particular a cerca dos rumos da história. A função da cena é fazer a ação avançar. No caso das cenas essenciais, e no modelo aristotélico todas as cenas devem ser essenciais caso contrário deverão ser descartadas, a cena é parte fundamental da ação sem a qual esta não encontrará uma progressão convincente rumo ao clímax e ao desfecho final.7


Cena, palavra, imagem


É na criação e ordenação de cenas dramáticas que se encontra a principal contribuição do roteirista para a construção narrativa do filme. A constatação dessa especificidade no campo de trabalho do roteirista trás consigo um problema central em relação ao papel da escrita do filme que está ligado à relação palavra-imagem. É comum vermos associado a escrita de um roteiro com uma série de descrições de imagens para o filme (muito embora uma peça audiovisual não se resuma apenas ao conteúdo das suas imagens). É na descrição de imagens que se encontra o maior desafio para o roteirista. De fato, o roteiro, para ser cinematográfico, deve se ater apenas àquilo que está ao alcance do olhar, seu texto tem necessariamente de estar submetido a essa condição de descrever sempre alguma coisa que é dada a ver. No trabalho do roteirista, a recorrência a esse universo imagético ocorre em um nível elementar de sugestão de imagens. Grande parte dessas imagens está relacionada a um quadro expressivo dominado pelo ator (que personifica o personagem no filme) e por aqueles objetos de cena com função dramática. Além disso, soma-se a indicação, feita de modo sintético, do cenário onde a ação transcorre. Essa indicação aparece preferencialmente na rubrica inicial que traz a descrição dos componentes básicos da cena: cenário, personagens e suas respectivas ações e disposições espaciais. No caso do exemplo do roteiro de Jorge Furtado citado acima, vemos a movimentação de um personagem, André, por um espaço cenográfico elementar, os arredores de um supermercado no qual se encontra um terreno baldio, e a descrição de sua ação ao se livrar de uma grande soma de dinheiro. No caso dos objetos de cena com função dramática temos a mochila (que serve para esconder o dinheiro), o dinheiro (objeto principal da cena), uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos, todos servindo a ação dramática do personagem. Não temos a descrição de como esse personagem está vestido, seu figurino, qual a configuração exata da fachada do supermercado (se é grande, pequeno, cor da parede, luminoso, etc), de como é exatamente o terreno baldio (se é repleto de mato, mato alto, mato baixo, com lixo, sem lixo, etc), detalhes que vão aparecer na imagem do filme mas que não interessam ao roteiro.

Adotando como referência de análise o modelo de roteiro literário, que antecede a escrita do roteiro técnico, portanto um roteiro que ainda não apresenta descrições de planos de câmera, a cada início de cena teríamos, como ponto de partida na construção dessa imagem mental que guiará a composição do quadro cinematográfico, algo equivalente a um plano geral, também conhecido como plano de situação, que estabelece de antemão o espaço cenográfico para o espectador. O domínio desse plano geral, que está mais submetido à noção de espaço cenográfico do que à de espaço cinematográfico, poderá ser quebrado por uma série de alusões imagéticas contidas no fluxo do texto do roteiro, às quais o diretor normalmente se atém no momento em que está cuidando da decupagem técnica. Retornando novamente ao exemplo acima, dois detalhes principais descritos na cena que poderiam atrair uma atenção especial da câmera seriam a movimentação do olhar do personagem (Ele olha para os lados), que ressalta sua apreensão, e o monte de dinheiro (notas de cem e cinqüenta), objeto que domina toda a cena. Estaria assim contida no texto do roteiro a sugestão de dois cortes que quebrariam o domínio do plano geral ao inserirem dois planos próximos que dariam ênfase no olhar e no dinheiro.

Não cabe ao roteirista fazer uma descrição detalhada de imagens, além de ser imprecisa, a descrição detalhada de cada quadro cinematográfico se estenderia por um número infindável de páginas sem encontrar, ao final, qualquer justificativa para o bom planejamento do filme8. O quadro é outro quando essa sugestão de composição de imagens encontra na descrição de situações, dramáticas ou não, seu ponto de apoio. É na descrição de situações, vivenciadas por personagens, que se encontra o campo de total domínio para aquele que utiliza a palavra para pensar o filme. Essas situações irão incorporar tanto a movimentação e a gestualidade dos personagens como o cenário e os objetos de cena, dando assim substância a um universo de ficção imaginado pelo roteirista. A situação colocada no roteiro será a base para se pensar na composição de cada plano cinematográfico, incluindo aí enquadramento e trabalho de câmera, momento em que a ocupação de um espaço cenográfico será transposta e ajustada às exigências de um espaço cinematográfico.

A composição do quadro cinematográfico pode ser esboçada, em um momento posterior ao da escrita do roteiro, através da feitura de um storyboard, um mapa de filmagem composto por uma série de desenhos ilustrando os principais quadros do filme com as respectivas indicações de possíveis movimentações de câmera, atores e objetos de cena. A construção dos planos cinematográficos, contendo de forma detalhada todos os enquadramentos, trabalho de câmera, qualidade, incidência e intensidade de luz, etc, só se efetivará no momento da filmagem. Em outras palavras, a modelação do quadro imagético do filme é uma decisão de filmagem atribuída ao diretor com o auxílio de seu diretor de fotografia.

É, pois, por um critério de segurança e de controle do universo de representação, que o campo de domínio do roteirista se concentra no da elaboração de cenas dramáticas e não no de planos de filmagem, de domínio do diretor do filme. No momento da escrita do roteiro literário, o apelo à visualidade, que obrigatoriamente deverá estar contido no texto, não está necessariamente ligado a uma visualidade tipicamente cinematográfica. A expressão visual do roteiro ainda é uma expressão da visualidade cenográfica. No que concerne à elaboração da cena, a preocupação central do roteirista é a de apresentar uma situação - e desdobrá-la em várias situações, sob o impulso de uma ação - e não a de descrever uma sucessão descontínua de planos. No roteiro literário, a descrição das imagens estará submetida à descrição da situação e não ainda às exigências do plano, constatação a que também chega Jean-Claude Bernadet, resultado da sua experiência com a prática da roteirização. Diz ele: “O roteiro não deve ser a descrição verbal de um filme que posteriormente o diretor executaria. Do roteirista se espera a construção da narrativa, a divisão em cenas, a descrição das ações, e os diálogos, a partir de que o realizador elaborará a sua direção.”9


A cena entre o teatro e o cinema


A predominância do espaço cenográfico na visualização dos elementos de cena do roteiro não cria um vínculo obrigatório desta com uma concepção de cena tipicamente teatral. Ao contrário, o modo de concepção e realização da cena, no roteiro, parte de um pressuposto que expressa uma diferença radical, na experiência da escrita, entre os textos cinematográfico e teatral. Falamos, mais precisamente, dos modos específicos com que os dois textos tratam do lugar da representação10.

A diferença entre escrever uma cena para o teatro e escrever uma cena para o cinema é determinada, a priori, por uma norma do estatuto de cada um dos enunciados. Tanto uma peça de teatro como um roteiro de cinema trás estampado em suas primeiras linhas de apresentação o meio ao qual o texto se destina. Ambos os textos propõem uma representação encampada por atores. No teatro, esta representação ocorre em um local privilegiado, o palco, que tem seus contornos claramente definidos para o espectador. Diante do palco, o espectador irá estabelecer uma distância segura. Essa distância deverá ter uma extensão mínima o suficiente para este consiga obter uma total visualização de todo o espaço cenográfico. O palco pode adquirir formas diversas, o que afeta diretamente a relação deste para com o espectador, da clássica polarização palco-platéia do palco italiano, às formas que buscam um maior envolvimento entre a cena e o público, como o caso do palco elisabetano ou de propostas ligadas ao teatro contemporâneo como aquelas diretamente influenciadas pelos escritos teóricos de Antonin Artaud. Esse espaço privilegiado de representação pode ainda reservar surpresas para o espectador no decorrer da apresentação teatral, como a da revelação de novos espaços, até então ocultos, que podem alterar uma percepção inicial da abrangência da construção cênica, ou de efeitos de luz que criam novas ambientações para a cena. Qualquer que venha a ser o caso, a percepção, por parte do espectador, do local de representação será sempre uma percepção distanciada e totalizante, comandada por um olhar que tem o domínio de todo o espaço cenográfico. Outro fator comum no teatro diz respeito à imobilidade do espectador. A distância de observação do espectador de teatro em relação à cena é uma distância fixa. O que equivale a dizer que o espectador mantém sempre um mesmo ponto de vista do local de representação. Todas essas relações impõem, ao dramaturgo, um modo de comunicar entre palco e platéia, o que poderíamos chamar de um modo da teatralidade. O teatro não admite o gesto pequeno, o detalhe, a intimidade. Se estas qualidades estiverem no conjunto de ambições do dramaturgo, serão alcançadas apenas de forma aproximada, não com a intensidade que observamos no cinema. Mais do que isso, a intimidade no teatro exige que se remova a representação do grande palco em troca de lugares menores que possibilite o contato próximo entre o ator e seu público, o que implica em uma sensível diminuição do número de espectadores por espetáculo.

Já o roteiro de cinema não trabalha com a mesma noção de palco, como local único e privilegiado da representação, mas com um espaço mais aberto sem limites claramente definidos, um lugar do mundo. Ao trabalhar com essa noção de lugar do mundo, o roteirista trabalha também com uma noção de onipresença. Ausente a figura do palco, como espaço geográfico que centraliza uma representação, fica desfeita as limitações espaciais que acomodariam a movimentação dos personagens em cena. Em vez de um espaço único (o palco) que será revestido por uma ou várias ambientações cenográficas, abre-se ao roteirista a possibilidade de se trabalhar com uma diversidade de espaços do mundo, cada um deles com sua própria ambientação cenográfica, em outras palavras, colar o espectador ao personagem e não ao espaço de representação, o palco. No espaço cenográfico do cinema (pensado ainda na maneira como este é tratado no roteiro) o espaço da representação possui tanto interesse quanto o espaço que está além. Para o espectador de cinema e, por contaminação, para o leitor do roteiro, tão real quanto o espaço que está diante de si, na tela, é o espaço que está fora da tela, mesmo que esse espaço nunca venha a ser revelado para ele. Tudo o que está fora de quadro é percebido como uma extensão do mundo que, embora não nos seja dada a olhar, é parte do espaço de domínio do personagem11. À essa dispersão épica, que quebra com a concentração dramática do palco, soma-se a possibilidade de se trabalhar com uma relação de proximidade do espectador com a cena (o personagem e seu entorno). Ir a todos os lugares onde a história acontece e, mais do que isso, poder ter um contato íntimo com cada um dos personagens, perceber o gesto pequeno, o detalhe, aspectos que poderão ser ressaltados depois com a posterior inserção dos planos de filmagem. O planejamento de uma cena, no roteiro, leva em consideração um ponto de observação privilegiado, do espectador, que o coloca dentro do local da representação, dentro do cenário. Como conseqüência, a representação não precisa mais transpor uma distância para alcançar o espectador. A expressão física do ator não precisa ir além do espaço cenográfico ao qual ele está circunscrito, se comunica apenas com esse espaço. Em relação à expressão do ator teatral, cujo domínio se estende para além das dimensões do palco, a expressão do ator cinematográfico é uma expressão da intimidade, que encontra sua justificativa apenas dentro do universo da ficção.

A constatação expressa aqui, referente ao lugar da representação, liberta o roteiro da dependência do texto teatral. Para aquele que trabalha com o texto dramático, se trata de dois campos de atuação com possibilidades expressivas distintas a serem exploradas. Para o cinema, a escrita de cenas dramáticas serve apenas para a organização textual do filme, ela existe, como autônoma, apenas na primeira etapa de roteirização12. É uma descrição que é feita pelo roteirista para ser, posteriormente, picotada, na forma de diversos planos, pelo diretor. O plano se apropria dos elementos da cena e os re-configuram. Pela forma do recorte, o plano opera uma seleção dos elementos inscritos em um espaço maior. Eventualmente o diretor pode se valer de uma noção de equivalência (equivalência virtual!) entre plano e cena, fato comum no primeiro cinema em que a câmera se limitava ao papel de registrar, de uma posição fixa e passiva, o evento dramático em toda a sua duração. A cena dramática só terá função no período de pré-produção do filme. Servirá para criar uma ambientação cenográfica fundamental no interior da qual ocorrerá um acontecimento a ser registrado através das tomadas de câmera de acordo com as descrições de planos, encontradas no roteiro técnico. A cena trás a descrição do evento a ser registrado e não do “como” esse mesmo evento deverá ser registrado.


NOTAS:

1. Em uma tentativa de se livrar da herança teatral e afirmar a autonomia do meio cinematográfico, é comum encontrarmos em roteiros e planilhas de produção, como análise técnica, ordem do dia e plano de filmagem, a substituição do termo cena pelo termo seqüência. Em alguns casos, esses mesmos documentos de produção utilizam o termo cena quando fazem menção ao que seria mais conhecido como plano cinematográfico. Seja qual for a denominação adotada, a confusão está ligada somente a uma alteração de nomes que não implica em uma mudança conceitual daquilo que estamos chamando aqui como a menor parte do roteiro.
2. A concepção de cena que estamos utilizando não é a mesma utilizada no drama clássico, no qual sua marcação é limitada à entrada e saída dos personagens. No drama clássico, principalmente aquele guiado pelas normas rígidas do aristotelismo francês, a cena não possui a ampla autonomia, em relação ao ato, que irá conhecer no teatro de Shakespeare e do período romântico, por exemplo.
3. Sobre esse assunto, ver crítica de Décio de Almeida Prado à peça Toda nudez será castigada, em Nelson Rodrigues radicaliza a adoção de cenas na quebra da continuidade do ato. Em PRADO, Décio de Almeida. Exercício findo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987, p. 109.
4. FURTADO, Jorge. O homem que copiava. Disponível em . Acesso em 07/01/2006.
5. FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995, p. 112.
6. HOWARD, David; MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro cinematográfico. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1996, p. 145.
7. No contexto dessa análise, não estaremos trabalhando com esse rigor conceitual. Estamos considerando também como cena dramática cenas que descrevem situações não conflituosas. Serão consideradas dramáticas apenas por proporem a encenação de um determinado evento de uma história.
8. Um exemplo da dificuldade de se descrever detalhadamente as imagens de um filme se encontra nas publicações que trazem, ao invés do roteiro, transcrições de filmes de importância histórica como por exemplo: RENOIR, Jean. La règle du jeu, nouveau découpage intégral. Paris: Lê Livre de Poche, 1999.
9. BERNADET, Jean-Claude. O caso dos irmãos Naves, roteiro original. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004, p. 13.
10. Sobre o local da representação no cinema e no teatro ver BAZIN, André. O cinema, ensaios. São Paulo; Brasiliense, 1991, p. 146-147.
11. Sobre esse assunto ver: Nana ou “os dois espaços” em: BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
12. É importante não confundir a definição de cena que estamos utilizando aqui com a que Christian Metz adota para definir um dos sintagmas possíveis à montagem cinematográfica, “o único sintagma cinematográfico parecido com uma ‘cena’ de teatro, ou mesmo com uma cena da vida cotidiana, isto é, um sintagma que oferece um conjunto tempo-espaço apreendido como não tendo falhas.” Em METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 151.