ARTIGO

Entre a janela e o espelho:
33, um projeto autobiográfico de Kiko Goifman
Sérgio Puccini
Doutor em Cinema pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios IA/UNICAMP

Artigo originalmente publicado em:
CADERNOS DA PÓS-GRADUAÇÃO – INSTITUTO DE ARTES
Ano 8 vol.3 n.3 - 2006


RESUMO: O artigo apresenta uma análise do documentário 33, dirigido por Kiko Goifman. 33 segue a linha dos documentários autobiográficos, ou em primeira pessoa, no qual acompanhamos a busca de Kiko Goifman por sua mãe biológica. A análise enfoca algumas particularidades encontradas no documentário como as estratégias de exposição do autor controladas pelo discurso do filme. 33 subverte algumas das expectativas normalmente associadas a um filme autobiográfico ao primar pela discrição na forma de tratamento e exposição do assunto. A análise pretende demonstrar que a razão para muitas das opções adotadas pelo discurso se encontra no choque entre a história do filme e a história de vida de seu diretor.

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33, longa metragem dirigido por Kiko Goifman, segue a linha dos documentários em primeira pessoa, ou autobiográficos, tendência já há muito incorporada na tradição do cinema e vídeo documental. Em 33, acompanhamos a busca do realizador por sua desconhecida mãe biológica, ele sendo filho adotivo de Berta Goifman. Todos os esforços de busca estão concentrados à cidade de Belo Horizonte, cidade natal de Kiko, onde ainda reside sua família. Para tanto, Kiko estabelece algumas estratégias que servirão como um guia de conduta pessoal. De início, Kiko define previamente um limite temporal para a busca: o 33 do título se relaciona não só à idade do realizador à época, mas aos 33 dias permitidos para a investigação. Esta se encerrará, forçosamente, ao término desse período independente dos resultados obtidos até então. Durante todo o documentário, Kiko Goifman encarnará a figura de um detetive amador. Para isso, buscará o auxílio de alguns dos profissionais do ramo (quatro, no total) que atuam em São Paulo e Belo Horizonte. Além de uma busca pessoal, o que temos em 33 é uma aberta homenagem aos filmes policiais, mais especificamente os filmes noir dos anos 40 e 50. Essa homenagem é reforçada pela utilização do preto em branco como padrão de cor, além das constantes citações a escritores consagrados no gênero (particularmente Dashiell Hammett).

Como projeto autobiográfico, 33 é marcado, curiosamente, pelo distanciamento estabelecido entre o autor e o espectador. Esse distanciamento se evidencia no tratamento das imagens, na distribuição das informações ao espectador, na recorrência a gêneros da narrativa ficcional, particularmente o gênero policial dos filmes de detetive, e até mesmo na forma como, em alguns momentos, o autor se dirige ao público. Conforme demonstraremos ao longo deste artigo, esse distanciamento é resultado de um processo de reflexão vivido pelo autor durante todo o decorrer do projeto. Trata-se de um gesto intencional de Kiko, cujo sentido se encontra dentro do próprio filme.

As imagens

Em 33, grande parte do repertório de imagens, que permeia o filme, é composto por panorâmicas da paisagem urbana (São Paulo e Belo Horizonte) vistas das janelas dos apartamentos habitados por Kiko no período de produção do documentário. Dentre todas as janelas “visitadas” por Kiko, a de localização mais privilegiada parece ter sido a janela do apartamento do hotel, no centro de Belo Horizonte, situado no décimo nono andar com vista para quase toda a cidade. Essas panorâmicas são, na grande maioria, visões noturnas da cidade, suas ruas, avenidas e seus habitantes solitários. O recurso do slow motion, utilizado de forma recorrente nesses momentos, possibilita um grau maior de abstração no processo de identificação da imagem por parte do espectador, um recuo do olhar. As panorâmicas funcionam como imagens de transição entre as imagens dos depoentes e as que mostram a ação de Kiko, além de servir como base para o texto reflexivo de Kiko, via narração off. Durante boa parte do documentário, Kiko irá se debruçar nos peitoris das janelas assumindo a figura de um insaciável voyeur, inclinação que vem estampada em seu texto: “Fui voyeur de uma cidade inteira.” diz ele ao se referir à vista disponível no quarto do hotel.

Ao apontar a câmera para fora da janela, Kiko procede de maneira inversa ao que normalmente se espera de um trabalho autobiográfico, no qual a câmera se volta para “dentro da janela”, para dentro do universo do realizador, possibilitando, ao espectador, um convívio mais íntimo com este. Em 33, essa possível intimidade é evitada. Kiko opta pela discrição. Cláudia, mulher de Kiko, anunciada como parceira nas investigações, pouco aparece na tela e em nenhum momento se manifesta. As poucas imagens que temos da intimidade do casal aparecem na forma de reflexos nos vidros das janelas. A exposição de Kiko diante da câmera, que se dá a cada vez que ele deseja se comunicar diretamente com o espectador, é feita através da utilização de um efeito de edição que cria uma fresta de imagem que permite uma visão parcial do rosto de Kiko. A imagem “limpa” de Kiko aparece apenas via reflexo em vidros e espelhos.

Em todos os momentos de ação, Kiko opta por uma câmera subjetiva, seus olhos coincidindo com o “olho” da câmera. Nessas situações, Kiko, para se dirigir ao espectador de forma direta, o faz novamente através da intermediação de espelhos (mais freqüentemente através do espelho lateral do carro). Se, por um lado, esse recurso, que vem a ser bastante comum em projetos dessa natureza, permite a Kiko manter o ponto de vista subjetivo da câmera, por outro impede sua exposição frontal plena, já que seu rosto aparecerá sempre escondido por detrás da câmera.
Outro procedimento evitado em 33, e que também é bastante comum em documentários autobiográficos1, é a utilização de imagens de arquivo, retratos ou vídeos de família, que poderiam permitir ao espectador um maior envolvimento, via contato visual, com o universo familiar do autor. Em 33 não existem imagens do passado. Kiko prefere deixar ao espectador a tarefa da reconstrução dessas imagens, aludidas a todo o momento pelos depoentes.
Informações

A quantidade de informações que Kiko disponibiliza ao espectador sobre sua situação familiar ou sobre o andamento do projeto também é feita de forma mínima, e está concentrada apenas aos fatos envolvendo a adoção. Quase nenhuma informação sobre o pai adotivo de Kiko nos é passada. A não ser por uma rápida menção de ele ter sido um comunista perseguido pela ditadura militar, o pai é figura ausente em 33. Faltam também maiores informações sobre a irmã, Márcia, que, pelo depoimento que presta, parece ter sido a primeira a ser adotada pela família Goifman, mas isso não fica explicitado no documentário. Márcia possui história semelhante à de Kiko, mas Kiko prefere não explorá-la. O que poderia ser entendido, como uma manifestação egocêntrica do autor, que reclama por todos os espaços de atenção do filme, tal atitude revela, no contexto de realização do documentário, um gesto de respeito de Kiko em relação à irmã no sentido de se preservar sua intimidade.

Do mesmo modo como não recorre a imagens de arquivo (retrato e vídeos de família), Kiko também evita reminiscências em seu texto reflexivo (reminiscências que seriam o contraponto verbal às imagens do passado). Kiko prefere o texto direto, seguindo a linha dos escritores noir que tanto o influenciaram nesse projeto. Essa objetividade não impede, no documentário, a manifestação de emoções e estados d’alma, mas essas se dão de forma pontuada e contida. Kiko prefere evitar todo o sentimentalismo, ou o tom melodramático, que sua história de vida pessoal poderia propiciar. Exemplo disso está no momento em que Kiko descreve um possível desfecho para o documentário, a cena final que marcaria o encontro de Kiko com sua mãe biológica. Kiko antecipa ao espectador que a cena desse encontro não será mostrada já que, para ele “o encontro seria o extremo do melodrama.” Outro momento em que Kiko deixa claro sua recusa ao sentimentalismo meloso está no off final no qual Kiko reflete sobre o encontro com Dr René, filho, adotivo, da mulher que intermediou sua adoção: “Temia encontrar um final piegas e me vi diante de um espelho.”

Se Kiko evita divagar sobre seu passado, deixando isso a cargo dos depoentes, as informações sobre o presente, sobre o dia-a-dia das investigações, também se resumem ao essencial. Os 33 dias da investigação não são descritos com os pormenores de um diário, mas são distribuídos em blocos de três, o que permite a Kiko uma maior liberdade no tratamento do tempo da ação. Kiko chega a passar por cima de alguns dias durante os quais não ocorre nenhum avanço significativo nas investigações, como o dia em que acordou de ressaca e preferiu passar na cama.

Gênero

Outro expediente utilizado por Kiko como estratégia de distanciamento é a recorrência ao gênero policial para enquadrar a estrutura de seu documentário autobiográfico. Desde sua abertura, 33 presta explícita homenagem aos romances e filmes desse gênero. Essa homenagem orienta a opção pelo P&B como padrão de cor, além de vir expressa nas constantes citações a autores que se consagraram nesse gênero, como Dashiell Hammett. A influência do gênero policial noir também é marcada pela preferência por imagens noturnas, na série de imagens panorâmicas, que retratam ambientes sombrios da cidade, noites chuvosas e personagens solitários. Mais do que orientar a estética do documentário, a recorrência ao gênero determina também a montagem da estrutura narrativa de 33. Kiko recorre a procedimento característico da narrativa clássica, qual seja, o prazo limite, ou o deadline2. Seu projeto tem apenas 33 dias para se cumprir. Os 33 dias de busca servem para enquadrar o tempo da história retratada no documentário, o tempo em que essa busca será feita de forma pública, não estando relacionado a sua busca privada. Ao adotar um artifício narrativo, o prazo limite, cria-se a expectativa de que essa história irá respeitar esse decurso temporal, condição básica para que a narrativa possa se efetivar. Assim sendo, não interessa à narrativa o final rápido. Este deverá ser adiado a fim de se explorar o suspense e a curiosidade do espectador em relação ao desfecho da trama. Já desde o primeiro dia de investigação, Kiko parece ter isso em mente. Diz ele em diário publicado na Internet durante o período de gravação do documentário: “Se entre vocês estiver uma mulher que abandonou o filho recém nascido em Belo Horizonte, 1968, peço que me procure só por volta do trigésimo dia de busca, quando o prazo estiver quase esgotado.”3

A preocupação com uma evolução gradual da tensão, visando o clímax final, no caso o possível encontro de Kiko com a mãe biológica, é percebida na forma como Kiko organiza o passo-a-passo de sua investigação. Os primeiros dias ficam reservados aos depoimentos dos detetives de São Paulo e familiares de Belo Horizonte. Kiko irá partir à campo efetivamente no início da segunda metade dos 33 dias, quando da sua primeira visita ao Dona Genoveva, local de sua adoção, e à Sta Casa, local de seu nascimento. As entrevistas à televisão são deixadas para o último terço da investigação, sendo que a matéria transmitida pelo programa de televisão Fantástico, momento de maior exposição pública do projeto, vai ao ar já no instante derradeiro desta.

Temos assim, em 33, não uma, mas duas tramas narrativas bem definidas. De um lado temos a trama que sustenta todo o projeto e se ajusta a um modelo clássico de narração: O protagonista, Kiko Goifman, buscando atingir uma meta, encontrar a mãe biológica, enfrentando obstáculos (burocracia, oposição familiar, entraves da memória...). Do outro, temos a trama ligada à própria história de vida de Kiko, que não se encaixa em normas narrativas e estabelece o caráter autobiográfico de 33. É justamente no choque entre essas duas tramas que se encontra o maior interesse do projeto. Desse choque nasce todo o conflito do documentário, conflito interior vivenciado pelo autor, Kiko Goifman, conforme veremos adiante.

Conclusão

No entender dessa análise, esse alegado distanciamento encontra sua justificativa dentro do percurso do projeto de exposição pública, que não se limitou ao período de divulgação e exibição comercial do documentário, mas teve início com o diário publicado na Internet, passando por aparições em canais da mídia impressa (jornais e revistas) e não impressa (Internet e televisão). Comparado o diário com o documentário finalizado, nota-se clara diferença na forma com que o autor tratou essa exposição. De um lado, temos um momento de abertura, o diário; do outro, recolhimento, o documentário. Se o diário foi escrito no calor da hora, o documentário teve uma gestação mais demorada, entre captação e finalização, que espelha um momento de reflexão vivido pelo autor. 33 não relata um momento comum na sua vida de Kiko Goifman, mas um período extremamente delicado para ele e sua família. Dessa forma, há que se ressaltar a determinação de Kiko ao levar a cabo um projeto cujo assunto quase nunca é tratado da forma aberta como ele propôs. O filme de longa metragem 33, sobre o qual essa análise se deteve, resulta das conclusões tiradas pelo autor durante toda a experiência de exposição pública e do processo investigativo que determinou o recorte temático do documentário.

A justificativa do projeto, para Kiko, está na boa história que este propicia. Existe também a necessidade, assumida por Kiko, de se romper um tabu envolvendo o assunto adoção. Ao tornar pública sua busca, Kiko espera alterar o ângulo de enfoque que normalmente associa adoção a figuras de ressentimento, rejeição e traumas que são bastante explorados pelo melodrama das novelas, gênero que Kiko rejeita energicamente. O que se nota, em 33, é uma certa resistência de Kiko em assumir essa busca como uma necessidade pessoal. A investigação serve para a história do documentário, não para a história de vida pessoal de Kiko. O problema é que essas duas tramas acabam inevitavelmente se misturando em uma só, e isso acarreta prejuízo para uma delas, uma delas há que abrir espaço para a outra. Kiko mantém seu compromisso com o projeto documental, mas ao mesmo tempo dá sinais claros de que, em seu íntimo, aquela investigação não é prioridade para ele. “Eu tenho a minha mãe.” diz Kiko durante uma das entrevistas à televisão. Ao tornar público o projeto, Kiko assume o risco de que o possível encontro entre ele e sua mãe biológica possa, a qualquer momento, se concretizar (como de fato acontece em casos explorados por programas de TV como prova do poder de comunicação dessa mídia), e dá mostras de que esse não é um encontro sonhado por ele. Sua recusa em exibir o encontro na tela, expressa no momento em que descreve a forma como ele trataria, no documentário, essa situação hipotética, também é sinal de sua recusa ao encontro fora da tela, fora do filme.

A pergunta que se faz então é o porquê desse projeto, se o assunto deste não parece fazer parte das prioridades pessoais do autor. Como resposta a isso já falamos de duas justificativas expressas por Kiko no longa, relacionadas ao tabu e à boa história. Mas ainda existe uma terceira justificativa que me parece importante. Antes de ser um documentário autobiográfico que retrata uma investigação de seu autor em busca de sua mãe biológica, 33 é também um ato de criação de um artista que se utiliza do vídeo como suporte para sua expressão. Um artista que buscou experimentar outros campos de atuação: se 33 não representa uma ruptura estilística no trabalho de Kiko, representa claramente uma ruptura temática (33 é o primeiro documentário autobiográfico na filmografia de Kiko Goifman). Com relação à sua necessidade de expressão, Kiko parece ter conseguido deixar isso claro para seus familiares, especialmente sua mãe, que, em retorno, manifestaram respeito pelo projeto. A rigor não há nenhuma “canalhice” (expressão usada por Kiko quando do primeiro encontro com a mãe no documentário) no fato de uma pessoa querer descobrir sua mãe biológica, curiosidade absolutamente natural de um filho adotivo. O que o vídeo demonstra é que a abertura de Berta, a forma com que ela acolheu o projeto do filho, apesar de toda a dor que a disposição de Kiko possa ter causado, acabou por fortalecer ainda mais a ligação entre filho e mãe, Kiko e Berta. Nesse sentido, 33 parece refletir mais essa constatação interior do que a busca pública que motivou todo o projeto. A história do documentário perde força para a história pessoal de Kiko.

33 não vale como história de detetive. Kiko está longe de ser um detetive durão, tipo Sam Spade, que sai distribuindo sopapos nos inimigos, transando com todas as mulheres gostosas que vê pela frente, mentindo e se metendo com todo tipo de gente. De fato, Kiko patina em momentos decisivos da investigação, lançando mão de evasivas como trocar a investigação pelo bar, manifestação clara de uma insegurança do autor. Como autor do projeto, Kiko certamente não espera que as pessoas vejam o documentário com a expectativa de quem vai ver um policial noir. O que vale em 33 é a história pessoal de um realizador que topou o desafio de abrir algumas portas para discussão de um assunto do qual ele é parte integrante. Ao fazer isso, Kiko enfrentou obstáculos, mas soube deixar claro, para as pessoas que dele estão próximas, que antes de qualquer coisa existe a necessidade de expressão do artista. O passo atrás de Kiko, que se dá no momento decisivo do documentário, a entrada em cena de Dr René propiciada pela matéria do Fantástico, diante da qual Kiko prefere se colocar como espectador, é também resultado de uma decisão consciente relacionada a um gesto em direção a sua mãe adotiva, Berta.

Como conclusão do percurso desta análise, me parece claro de que, ao finalizar seu projeto, o realizador conseguiu ter noção exata da validade de sua aposta. A busca de Kiko Goifman se encerra em Berta Goifman, declaração expressa, em texto, no último instante de 33; gesto maior de retribuição afetiva e de constituição simbólica do laço materno.

NOTAS

1. Ver: TURIM, Maureen. Reminiscences, subjectivities and truths. Em JAMES, David (ed.). To free the cinema, Jonas Mekas & the New York underground. Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1992.
2. Para isso, ver, por exemplo: BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Wisconsin: The Univesity of Wisconsin Press, 1985.
3. Disponível em <http://www.paleotv.com.br/33/diario01.htm>. . Acesso em 07/07/04.

Ficha Técnica:
33 (SP, 2002, 72mins.)
Direção: Kiko Goifman
Roteiro: Cláudia Priscilla e Kiko Goifman
Produção: Jurandir Muller
Direção de produção: Cláudia Priscilla
Direção de fotografia: Kiko Goifman
Montagem: Diego Gozze
Música original: Tetine