ARTIGO

Quentin Tarantino e o Tempo
Sérgio Puccini
Artigo resultante de apresentação em IV Encontro Interno de Pesquisa em Artes e Multimeios
IA-UNICAMP, 2000






EMBORA para alguns críticos e espectadores os filmes de Quentin Tarantino acabem chamando mais a atenção pelos momentos de violência que apresentam, o que também tem servido como único parâmetro para aqueles imitadores de ocasião, o marco diferencial do trabalho desse cineasta até aqui reside no vigor de suas estruturas narrativas. Se fizermos um rápido levantamento de seus roteiros veremos que todos eles contam histórias que por si só seriam de pouco interesse já que apresentam manjadas situações de gênero vistas em centenas de outros filmes que os precederam (aos quais, por sinal, seus roteiros prestam devida homenagem). O próprio Tarantino definiu as histórias de compõem Pulp Fiction como sendo “as mais velhas histórias que já se viu”.1 O grande achado do diretor americano tem sido justamente o de recontar essas histórias manjadas assumindo algumas liberdades narrativas que fogem do padrão comum adotado pela maioria dos filmes de Hollywood. O que se observa como operação recorrente nos seus principais roteiros é uma hábil e decisiva manipulação do tempo da história. Essa manipulação encontra no recurso do flashback seu expediente mais habitual.

Em Cães de Aluguel (1992), filme que marca a estréia do diretor, quase metade das cenas do roteiro são compostas por flashbacks. Esses flashbacks são, na verdade, cenas de apresentação que permeiam a evolução da ação dramática. Ao todo, temos em Cães de Aluguel 4 blocos de flashbacks. Cada um desses blocos está relacionado a um determinado personagem da história. O primeiro flashback é o mais rápido e desmotivado de todos eles, mostra Mr Pink escapando dos tiros da polícia após o assalto à joalheria. Esse flashback funciona como uma ilustração do que Pink acaba de relatar a Mr White quando estes já se encontram refugiados no armazém. Após esse rápido flashback inicial vamos ter, por ordem, o flashback “Mr White”, seguido pelo flashback “Mr Blonde” e, por último, o flashback “Mr Orange”. Agrupados, esses três blocos corresponderiam ao primeiro ato da história, quando vemos a preparação de um grande assalto envolvendo uma gang de criminosos e um policial infiltrado. Ao alterar a ordem da apresentação dos fatos, Tarantino deixa em suspenso várias informações vitais para a compreensão da trama que o espectador tem diante dele. A principal delas está relacionada ao fato de Mr Orange ser, na verdade, um policial disfarçado que se infiltrou na gang a fim de poder capturar o chefão Joe Cabot. É em torno dessa informação chave que gira todo conflito da ação, todo ele apoiado na relação de lealdade entre Mr White e Mr Orange. O próprio Tarantino é quem explica a lógica por trás da estrutura montada em Cães de Aluguel:


“Se você quebrar o roteiro em três atos, a estrutura sob a qual ele trabalha será mais ou menos assim: no primeiro ato o espectador não entende nada do que está se passando. Eles estão apenas se familiarizando com os personagens. Os personagens têm muito mais informações do que o espectador. No segundo ato você começa a sacar o que se passa e a igualar seus conhecimentos com os dos personagens. No terceiro ato você agora sabe muito mais do que os personagens. No primeiro ato de Cães de Aluguel, até o momento em que Mr Orange atira em Mr Blonde, os personagens tem muito mais informações sobre o que acontece do que você - e eles tem informações conflituosas. Então nós temos a seqüência de Mr Orange que serve para nos nivelar com os personagens. Você começa a sacar exatamente o que está se passando. Na terceira parte, quando você retorna para o armazém para o clímax final você está totalmente à frente de todos os personagens. Você sabe mais do que Keitel, Buscemi e Penn porque sabe que Mr Orange é um policial e você sabe mais do que Mr Orange porque sabe sobre o paradeiro de Mr Blonde, sabe que ele foi para a cadeia por três anos pelo pai de Chris Penn. E quando Mr White aponta sua arma para Joe e diz “você está errado sobre esse homem” - você sabe que Joe está certo e que Keitel está defendendo o homem que na verdade o está entregando.”2


De todos os flashbacks, o flashback “Mr Orange” é o mais longo e complexo deles, funcionando como uma espécie de microcosmos da estrutura total do roteiro. Ele se inicia com (1) a cena do encontro entre Orange e Holdaway que se passa no restaurante Denny’s à noite. A cena se estende até o momento em que Holdaway chama a seqüência da commode story quando então retornamos no tempo para vermos (2) Holdaway explicando a Orange do que se trata e para que serve a tal história (o primeiro flashback dentro do flashback). A seqüência continua com (3) Orange decorando o texto para si (em seu apartamento) e (4) para Holdaway (em um exterior neutro). Passamos então a acompanhar (5) Orange pondo em prática a sua história diante de Cabot e alguns dos membros da gang no interior de um bar - The Boots and Socks, local referido por Orange na conversa com Holdaway. INSERT história sendo dramatizada, Orange no banheiro com os policiais conforme descrito em seu relato. Ao final do monólogo retornamos para (6) Orange e Holdaway no Denny’s o que marca o fim do primeiro flashback dentro do flashback. Em seguida passamos a acompanhar (7) Orange seguindo para seu primeiro encontro com Joe Cabot e sua turma quando então são distribuídos os codinomes a serem usados por eles durante o assalto (início do segundo flashback dentro do flashback). Dentro da cronologia dos fatos apresentados, a seqüência do primeiro encontro entre Orange e a gang marca o verdadeiro início do flashback “Mr Orange”. Mais um avanço no tempo e pulamos para (8) um momento que antecede o assalto quando vemos White e Orange diante da joalheiria acertando os últimos detalhes da ação. Uma elipse irá nos transportar para (9) um momento posterior ao assalto quando então acompanhamos a fuga de White, Orange e Brown.

Em ordem linear o flashback “Mr Orange” corresponderia a:


(7) - (2) - (3) - (4) - (5) - (1) - (6) - (8) - (9)


Além do suspense gerado por uma exposição retardada, que deliberadamente omite informações essenciais ao espectador, a estrutura em flashback de Cães de Aluguel permite também ao autor intercalar cenas de tensão a cenas de relaxamento, criando assim um ritmo de compassos binários que altera tempos fortes e fracos. É esse ritmo que faz com que a curva dramática se assemelhe mais com uma montanha-russa de subidas e descidas abruptas que quebram uma ascensão uniforme. Mais especificamente, a oscilação entre os tempos do roteiro é marcada pela intercalação entre momentos de extrema verborragia com momentos de ação. Como já disse um crítico “quando a energia retórica se eleva em um roteiro de Tarantino, significa que alguma coisa terrível está para acontecer - ou que já aconteceu e dessa precisamos nos recuperar.”3

Essa liberdade com que Tarantino manipula o tempo de sua história é fruto da influência das estruturas dos romances, particularmente dos romances policiais, nas concepções das estruturas narrativas de seus filmes. Diz Tarantino:


“Acredito que o que eu estou sempre tentando fazer é aplicar ao cinema as estruturas que eu vejo em um romance. Um romancista não se importa de começar o livro pelo meio de sua história. Eu achava que se eu conseguisse imaginar um jeito cinematográfico de fazer isso, isso seria bastante excitante.”4


O esforço a que se submete Tarantino na transposição de uma estrutura de romance para o meio fílmico faz com que o próprio chegue até mesmo a recusar o termo flashback, termo que temos usado até aqui, como um elemento recorrente em sua obra:


“Eu não considero que Cães de Aluguel tenha flashbacks. Esse é um termo que eu não reconheço. Eu uso uma estrutura de romance para contar minha história. Quando você lê um romance, os tempos se alteram constantemente sem que se refiram a isso como flashbacks. (...) Para mim um flashback é uma recordação pessoal de um personagem. Em Cães de Aluguel, eu, o narrador, estou contando a história em tempos diferentes. Para mim, cada personagem conta com um capítulo e cada capítulo vai completando a informação dos outros.”(5)


Tarantino acerta a dizer que o termo flashback não descende da narrativa literária, mas está profundamente ligado a evolução da narrativa cinematográfica. Em seu estudo sobre flashbacks em filmes, Maureen Turim lembra que o termo flash trás em si uma noção de velocidade associada ao dinamismo das técnicas de edição permitidas pelo cinema e que, embora o romance e o teatro já utilizassem expedientes semelhantes, “o termo flashback aparentemente não foi empregado até o advento do cinema e somente dez ou quinze anos depois do aparecimento do primeiro flashback fílmico.”6

Pode não parecer, mas o flashback é um recurso narrativo raro em Hollywood e até desaconselhado pelos autores de manuais. David Bordwell comenta que se fizermos uma amostragem de toda a produção clássica de Hollywood, constatamos que de cada cem filmes americanos, somente vinte usam flashbacks e quinze desses ocorrem no período do cinema mudo.7 Essa resistência ao uso do flashback se reflete nos conselhos dos autores de manuais de roteiro. Para Eugene Vale, “exposições prolongadas sobre o passado tendem a retardar a progressão dramática.”8 O mesmo diz Dwight Swain: “Como regra geral, é melhor evitar flashbacks sempre que for possível, simplesmente porque eles interrompem o fluxo da história. Flashbacks tendem também a entediar e confundir os espectadores. Como conseqüência, na maioria das vezes, o melhor é permanecer no presente da ação.”9 Lewis Herman ataca a utilização do flashback dizendo que este “impede a progressão contínua da ação fílmica”, além de quebrar a noção de realismo no espectador: “o flashback não acontece na vida real. A vida é uma contínua sucessão de eventos que começa e termina sem voltas no tempo. A menos que seja suficientemente motivado, essa sucessão de eventos que o filme deve tentar representar será interrompida de maneira bastante artificial.”10

Apesar de não ser um recurso predominante, alguns períodos, na história da produção cinematográfica hollywoodiana, são marcados por uma maior aceitação do recurso flashback. Entre esses períodos se encontra o dos anos 40 e 50 marcado pelos melodramas psicológicos e, principalmente, pela safra de filmes policiais sombrios designados por filmes noir. Foi justamente nessa safra de filmes policias que Tarantino buscou inspiração para escrever seus roteiros, se colocando como uma espécie de revisor do gênero: “Eu gosto da idéia de se poder partir de um gênero que já existe e reinventá-lo, como Leone reinventou todo o gênero Western.”11 diz Tarantino.

The Killing (Stanley Kubrick, 1956), um dos representantes máximos dessa safra de filmes policiais, é um dos filmes que guarda estreita relação com Cães de Aluguel (de fato, o próprio Tarantino confessa ser The Killing seu filme noir preferido12). Como em Cães de Aluguel, o filme de Kubrick narra a história de um assalto planejado e executado por um grupo de criminosos - no caso o alvo não é uma joalheria mas um hipódromo. Como em Cães de Aluguel, The Killing possui uma intrincada estrutura que joga com sucessivas manipulações temporais. Essas manipulações são sempre acompanhadas por uma voz over de um narrador neutro que orienta o espectador diante dos fatos da história ao mesmo tempo em que fornece ao filme um tom de documentário, espécie de cine-jornal que narra os fatos buscando a exatidão de um boletim policial. Como em Cães de Aluguel, cada flashback está relacionado a um dos personagens envolvidos no esquema do golpe. Temos uma situação de recorrência ligada ao momento crucial da ação que se dá em torno do 70 páreo da tarde. Partindo desse ponto central, Kubrick, que também assina o roteiro, opta por mostrar a trajetória de cada um desses personagens - até aquele momento central - em enfoques individualizados, e não de maneira simultânea, através de sucessivos flashbacks. Cada flashback esclarece uma parte da história. Como em Cães de Aluguel, todos os membros da gang acabam sendo mortos em um tiroteio que se dá entre eles, com exceção do líder, que vai preso.

Se em Cães de Aluguel Quentin Tarantino já provara sua habilidade de contador de histórias ao manipular o tempo dentro de uma ardilosa estrutura narrativa, nos moldes de seu mestre Stanley Kubrick, em seu projeto seguinte, Pulp Fiction, essa habilidade lhe permitiu ir mais adiante em suas experimentações com o tempo da história. Em Pulp Fiction observamos mais uma vez o artifício de recuos no tempo sendo posto em prática. Nesse caso específico, por uma característica estrutural, o termo flashback parece não se encaixar. O roteiro de Pulp Fiction trabalha com uma estrutura épica próxima a filmes como Nashville e Short Cuts, de Robert Altman, onde vemos quatro histórias paralelas nos sendo contadas de maneira sucessiva, e não simultânea como em Altman. Cada uma dessas histórias é composta por um casal de protagonistas. Temos (1) Pumpkin e Honey Bunny, um casal de namorados que de repente resolvem assaltar a lanchonete onde estão tomando café; (2) Vincent Vega e Jules Winnfield, uma dupla de matadores que saem para um acerto de contas; mais tarde iremos ver (3) Vincent e Mia Wallace, o matador agora servindo de companhia para a mulher do chefe; e por fim temos (4) Butch e Fabian, um lutador de boxe que está prestes a se aposentar, fugindo com a sua namorada após aplicar um golpe em Marsellus Wallace, chefe de Vincent e Jules, a quem havia prometido entregar uma luta em troca de dinheiro.

Utilizando um hábil recurso narrativo, o filme começa e termina na mesma hora e local: o interior de uma lanchonete em uma determinada manhã. No entanto, as cenas que ocorrem nesse local não se encontram nem no início e nem no fim da cadeia cronológica dos eventos apresentados. Organizadas de maneira linear, as cenas da lanchonete ocupariam o primeiro terço do tempo total da narrativa. Colocados os blocos de ação em sua ordem cronológica, teríamos o seguinte:


1. Vicent e Jules liquidam com um grupo de garotos que pretendiam roubar uma mala com mercadoria de Marsellus Wallace, homem para quem os matadores trabalham. Essa ação é marcada por um golpe de sorte que salva a vida de Vincent e Jules. Pegos de surpresa por um dos garotos do apartamento, que permanecera trancafiado no banheiro, os dois de repente se vêem no meio de uma saraivada de balas. No entanto, por absoluta falta de pontaria nenhum desses tiros chega de fato a acertá-los. Jules vê naquilo uma intervenção divina, um milagre. No caminho de volta, um disparo acidental, provocado por Vincent, manda pelos ares a cabeça de Marvin, uma espécie de ajudante da gang. Jules e Vincent seguem para a casa de Jimmie para resolver o caso. Após serem orientados por The Wolf, um amigo do chefe Marsellus, Vincent e Jules conseguem se livrar do corpo de Marvin e também do carro, ficando os dois a pé. No caminho de volta, os dois resolvem parar em uma lanchonete para tomarem um café.

2. Nessa mesma lanchonete, um casal de namorados, Pumpkin e Honey Bunny, inicia uma espécie de arrastão, roubando as carteiras de todos os freqüentadores do local. Nessa, acabam se defrontando com Jules que entrega sua carteira mas se recusa a entregar a mala de Marsellus Wallace, recuperada no início da história. Provando estar mais bem preparado do que Pumpkin no quesito violência, Jules reverte a situação a seu favor colocando Pumpkin sob a mira de seu revólver. Após algumas explicações sobre a nova conduta moral que pretende adotar, motivada pelo recente “milagre” que acredita ter presenciado, Jules entrega todo o seu dinheiro para os bandidos e os despacha. Na seqüência, Vincent e Jules vão até a um bar entregar a mala a Marsellus Wallace. No momento em que Vincent e Jules adentram o bar, Marsellus está orientando Butch Coolidge, um boxeador em fim de carreira que está sendo subornado para que entregue sua próxima luta.

3. No dia seguinte, Vincent passa na casa de um amigo traficante para comprar heroína. Em seguida, Vincent apanha Mia Wallace, mulher de Marsellus Wallace, seu chefe, a quem deverá servir de companhia por uma noite. Após jantarem em um restaurante temático, Mia acaba ingerindo, por acidente, uma overdose de heroína (a mesma heroína de Vincent que ela confundira com cocaína). Vincent é obrigado a recorrer ao amigo traficante que salva a vida de Mia após lhe aplicar uma injeção de adrenalina no peito.

4. Passa-se mais um dia e estamos no momento da luta de Butch, o boxeador que vimos antes conversando com Marsellus. Esse, ao invés de entregar o combate para o oponente, acaba o nocauteando até a morte com o intuito de ficar com o dinheiro das apostas. No meio da sua fuga, devidamente acompanhado por sua namorada Fabian, Butch dá pela falta de um relógio de ouro, objeto que tem valor puramente afetivo. Butch se vê obrigado a voltar ao seu antigo apartamento. Tendo recuperado o relógio, ação que também resulta na morte de Vincent que, por acaso, fazia guarda em seu apartamento, Butch cruza ainda com Marsellus Wallace, que passa atravessando a rua bem diante de seu carro enquanto ele aguarda o sinal. Butch joga o carro em cima de Marsellus mas acaba se envolvendo em um forte acidente ao atravessar a pista com o sinal vermelho. Embora grogue devido a atropelamento, Marsellus sai em perseguição a Butch que foge a pé abandonando o carro acidentado. A perseguição acaba dentro de uma loja de penhores onde os dois são rendidos pelo dono. Na companhia de um amigo policial, o dono da loja arrasta Butch e Marsellus para um porão onde então iniciam uma espécie de curra em série. Enquanto curram Marsellus, Butch dá um jeito de escapar. Antes de abandonar definitivamente o local, Butch resolve voltar para salvar o ex-desafeto. Completada sua ação heróica e reparadora, Butch e Marsellus selam um acordo e Butch, então, pode seguir viagem com a sua namorada.


Pela ordem do roteiro, a primeira cena que temos é a que mostra Pumpkin e Honey Bunny, os dois conversando na lanchonete. Na seqüência, retornamos no tempo para encontramos Jules e Vincent se dirigindo para o acerto de contas. A seqüência seguinte mostra Butch Coolidge recebendo o suborno de Marsellus Wallace para que entregue sua luta. Nesse momento vemos Vincent e Jules entrarem no mesmo local onde se encontram Butch e Marsellus. Um corte e vemos Vincent indo buscar Mia Wallace para seu passeio noturno. Desse ponto em diante as cenas do roteiro continuam sua evolução linear até o fim da história de Butch e seu relógio de ouro, quando então temos mais uma volta no tempo que irá mostrar o fim da história envolvendo Vincent e Jules. Retoma-se o momento da chacina no apartamento dos delinqüentes para depois termos as cenas subsequentes, que mostram o acidente envolvendo Vincent e Marvin no trajeto de volta, a resolução do problema comandada por The Wolf e, por fim, o encontro de Vincent e Jules com Pumpkin e Honey Bunny na lanchonete.

Embora essa manipulação temporal seja facilmente identificada, o que nos possibilita armar a ordem cronológica entre as seqüências, não podemos afirmar que em Pulp Fiction existam flashbacks. Se olharmos as 4 histórias separadamente veremos que todas elas apresentam uma evolução 100% linear. Em nenhum momento verificamos um retrocesso temporal durante o desenvolvimento de cada uma dessas histórias. O que faz com que percebamos esses recuos no tempo, no contexto da narrativa, é uma estratégia montada pelo narrador de estabelecer elos de conexão entre as histórias, mesmo que às vezes esses elos sejam sutis. Butch em algum momento cruza com Vincent e Jules que em algum momento cruzam com Pumpkin e Honey Bunny. Embora existam esses cruzamentos, todas as histórias evoluem em ordem de sucessão e não simultaneamente uma com a outra, o que facilita ao espectador acompanhar de modo separado o desenvolvimento de cada bloco de ação. Cada um desses blocos de ação formam como que capítulos à parte no corpo total da obra. Isso gera um efeito curioso. Vemos, em determinada altura do roteiro, Vincent Vega ser morto por Butch Coolidge no momento em que este consegue recuperar seu relógio de ouro. Nas seqüências finais do filme, Vincent irá reaparecer vivo junto com Jules. Vincent morre enquanto acompanhamos o desenrolar da história de Butch, onde Vincent é personagem secundário, poderia muito bem ser trocado por qualquer um dos capangas de Marsellus. A informação sobre a morte de Vincent não altera em nada o desdobramento da história subsequente, onde ele volta a se tornar personagem principal. Embora Vincent fosse personagem secundário dentro da história de Butch, seu reaparecimento nas cenas finais do filme não deixa de causar um certo embaraço nos espectadores. Tal embaraço não chega a desnorteá-los por completo e nem é essa a intenção, como explica o próprio diretor:


“Eu não acho que meus filmes sejam difíceis de se acompanhar. A única coisa necessária é que você tem que selar uma espécie de compromisso ao assisti-los, você tem que se envolver totalmente com eles. Eu não faço filmes para espectadores de ocasião. (...) Para mim, o mais importante é contar uma boa história. Minhas estruturas podem ser complexas, mas minhas histórias são muito simples.”13


Essa tendência em Tarantino de se embaralhar o tempo da história fica menos evidente em Jackie Brown, mas nem por isso desaparece por completo, como atesta a seqüência da troca de dinheiro, momento chave da trama onde Jackie coloca em prática sua armação, arquitetada juntamente com Max Cherry, que resulta em um considerável lucro financeiro para ela. Mais uma vez, Tarantino repete o recurso que vimos em The Killing de se mostrar várias vezes um mesmo momento da ação, apenas alterando os pontos de vistas, ao invés de misturar os enfoques em uma edição que simularia a simultaneidade. Fora a seqüência da troca de dinheiro, em Jackie Brown Tarantino confirma que também é capaz de se ater a uma evolução linear da ação, caso isso lhe pareça ser o melhor caminho de expor a história, conforme ele mesmo explica:


“Eu sinto orgulho do que fiz em Cães de Aluguel e Pulp Fiction. (...) Mas eu sempre disse que se a história for mais emocionante e mais envolvente contada de maneira linear, então eu vou contá-la desse jeito. Eu não vou embaralhá-la só para mostrar o quão inteligente eu sou.”14


Compromisso, palavra usada anteriormente por Tarantino, parece mesmo ser um termo adequado quando tratamos das estruturas narrativas dos roteiros desse diretor. De fato, uma das conseqüências mais imediatas desse desapego à linearidade é exigir uma maior concentração, por parte do espectador, durante o desenrolar da história. Conforme já dissemos, os esquemas temporais não são difíceis de se armar, existe uma cadeia lógica ligando todas as cenas o que faz com que cedo ou tarde acabemos por localizá-las dentro do contexto geral da história. Mas para que o espectador perceba o elo de ligação entre todos os acontecimentos é necessário, antes de tudo, atenção. Tarantino se recusa a entregar a história mastigada. Talvez esse seja um dos segredos que sustenta o prazer de se assistir a os seus filmes a cada nova exibição.


NOTAS

1. Em When you know you’re in good hands, Quentin Tarantino interviewed by Gavin Smith, revista FILM COMMENT, july-august 1994, vol. 30, #4.
2. Em When you know you’re in good hands, Quentin Tarantino interviewed by Gavin Smith, revista FILM COMMENT, july-august 1994, vol. 30, #4.
3. DEEMER, Charles, The Screenplays of Quentin Tarantino, revista Creative Screenwriting, Winter, 1994.
4. Em Answers First, Questions Later, An interview with Graham Fuller, introdução à TARANTINO, Quentin, Reservoir Dogs, Faber and Faber, London, Boston, 1994, p. xiii.
5. Entrevista com Quentin Tarantino por Leonardo Garcia Tsao, revista Dicine, #57, 1994.
6. TURIM, Maureen, Flashbacks in Film: memory & history, Routledge, New York & London, 1989, p. 4.
7. BORDWELL, David, STAIGER, Janet, THOMPSON, Kristin. The Classical Hollywood Cinema, film style & mode of production to 1960. London: Routledge, 1985, p. 42.
8. VALE, Eugene. Técnicas del Guion para Cine y Televisión. Barcelona: Gedisa, 1985, p. 52.
9. SWAIN, Dwight V.. Film Scriptwriting - a pratical manual. New York: Hastings House Publishers, 1976, p. 190.
10. HERMAN, Lewis, A Pratical Manual of Screenwriting for Theater and Television Films, New York: A Meridian Book, New American Library, 1952, p. 67.
11. Em X Offender, artigo de Sean O’Hagan, The Times Magazine, 15 October 1994, parte da coletânea Quentin Tarantino: the film geek files. WOODS, Paul A. (edit.). London: Plexus, 2000, p. 61.
12. Conforme relata em entrevista a Leonardo Garcia Tsao, revista Dicine, #57, 1994, ou é relatado por CLARKSON, Wensley. Quentin Tarantino - Shooting From The Hip. London: Piatkus, 1995, p. 64.
13. Em X Offender, artigo de Sean O’Hagan, The Times Magazine, 15 October 1994, parte da coletânea Quentin Tarantino: the film geek files. WOODS, Paul A. (edit.). London: Plexus, 2000, p. 66.
14. Method Writing: an interview with Quentin Tarantino, revista Creative Screenwriting, January/February 1998.